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Capítulo 1 - Parte 3 - Velhas Cartas


 









Parte 3

Dia após dia foi transcorrendo normalmente, eu com os cuidados com dona Cristina e ela cada dia tinha uma história para me contar. Cada uma mais fascinante que a outra, eu sabia que ela tinha segredos. Mas um dia ela me chamou com uma voz embargada, era a primeira vez em dois meses que eu a via falar assim. Parecia cansada.

— Eliza, no quartinho de passar roupa, na última prateleira onde tem algumas caixas com etiquetas laranjas, tem uma com desenho floral meio apagado pelo tempo. Por favor, trague-a para mim.

Eu fui imediatamente, encontrei a caixa, era menor que as outras e estava bem afastada, quase escondida.

— Aqui está dona Cristina. A senhora está se sentindo bem? Não quer que eu chame o seu médico?

— Não querida, estou bem. – Mas ela não estava, eu percebi isso, ela falava como se estivesse triste, porém sorrindo. – Apenas com a emoção cansada, sabe que existe isso? As emoções também se cansam, até ficarmos sem sentir nada.

— Oh não dona Cristina, sempre tem novas emoções, enquanto há vida haverá emoções, talvez não tão boas, mas elas existirão.

— Sim... Sim... Talvez você tenha razão. Vamos ver se isso é verdade abrindo essa caixa. – Ela disse e logo sorriu.

— Venha Eliza, suba na cama, quero que se sente ao meu lado, bem aqui – ela disse dando algumas tapinhas no colchão indicando seu lado.

De repente vi aquela senhora tão alegre parecer ter envelhecido nos últimos minutos, seu semblante tinha um sorriso tão triste. E ao ouvir aquilo eu senti uma forte dor no meu coração. Entendi que ela queria um momento de desabafo talvez. Então eu não titubeei em fazer o que ela pediu, tirei as sapatilhas que estava usando e sentei-me ao lado dela, quase encostando. Ela pegou a caixa antiga de papelão que noutrora parecia ter tido uma linda estampa floral. Ficou um tempo olhando para a caixa, depois ergueu a cabeça olhando para a penteadeira que ficava de frente com a cama. Ela tinha um olhar distante, parecia saudoso, melancólico. Eu não estava gostando muito daquilo.

— Esta caixa Eliza é meu baú de tesouro, o que tenho aqui guardado é de um valor imensurável. Abra-a, por favor. – Ela pediu e me entregou a caixa com mãos tremulas.

— Aqui está dona Cristina, está aberta. – Eu passei a caixa para ela e sorri, ela sorriu de volta.

— Eu não sou essa senhora boazinha que você e Fernando pensam que sou. – Ela sorriu um pouco tímida, parecia estar recuperando o bom humor de sempre. Tirou de dentro da caixa um grande envelope marrom, abriu e virou o conteúdo em seu colo. Várias cartas caíram, e uma pequena caixa preta. Parecia uma caixa de anel. Ela segurou a pequena caixa, depois envolveu-a com as duas mãos e encostou no peito fechando os olhos.

— Eu sei que você perdeu sua mãe há poucos meses criança, e eu, era para eu ter uma filha, com a sua idade hoje. – Eu empalideci, não sabia o que dizer. – Está tudo bem... Está tudo, eu me apaixonei sabe.

— Sim eu entendo, a senhora fala dele com muito... – Eu parei por um instante sem saber como concluir a frase lembrando do último comentário dela sobre seu falecido marido. – Muito... respeito?

Para meu espanto ela riu, riu muito, na verdade gargalhava.

— Ah criança, obrigada por me fazer rir, de fato respeito foi a única coisa que tentava sentir por ele. Não que ele merecesse, mas eu devia isso a ele. Eu me apaixonei, depois do casamento. – Ela ficou um pouco em silencio enquanto juntava as cartas em seu colo, sem largar a caixinha preta.

— Não foi por Antônio, não Eliza. Eu me apaixonei por outro homem. Meu casamento foi uma fraude. Ele nunca me amou, e eu achei que gostava dele, casamos por decisão de nossos pais, mas nunca houve amor. – Dona Cristina falava com tanta amargura que eu temi o que estava por vir daquela conversa.

— Durante o pré natal da minha primeira gravidez aconteceram muitas coisas. Antônio nunca estava presente nas consultas, e um dia nós tivemos uma briga feia por isso. Ele me agrediu me empurrando, e, ao cair eu quebrei o braço.

Eu fiquei com o espanto estampado no rosto ao ouvir aquilo, os meus pais tinham tido um relacionamento maravilhoso, cheio de amor, respeito e carinho. Ouvir aquele relato chegou me dar uma forte contração no estômago. Ela continuou a falar sem perceber minha reação.

— Eu estava no segundo mês de gestação, no dia da consulta meu marido mandou que eu inventasse alguma história para meu braço engessado. Mas eu não pude, o meu médico já desconfiava que meu casamento não ia muito bem. Ao ver meu braço o doutor não perguntou nada, mas me fitava de uma forma que eu não consegui conter as lágrimas.

— Dona Cristina, não acha melhor falar sobre isso outro dia? Acho que deve descansar um instante.

— Quando eu morrer vou ter tempo de sobra para ficar deitada – dizendo isso ela riu e continuou a contar sua história de amor proibido.

— Ele se apaixonou por mim no primeiro dia que me viu, foi numa festa de casamento de um amigo que tínhamos em comum. Eu estava sozinha, pois Antônio tinha viajado a serviço. Então eu recebi um bilhetinho, de amor. Eu não sabia de quem era, fui atrás do menino que me entregou e perguntei a ele quem o enviara. Ele riu e saiu correndo, não vi mais aquele danadinho sabe. Poucos minutos depois eu estava pegando limonada na mesa e ele chegou perto, tão perto ao meu lado que eu podia sentir o calor que emanava do seu corpo. – Ela sorriu maliciosamente. — Achei um atrevimento, mas nunca mais esqueci aquela sensação tão gostosa.

Dona Cristina parou um momento e ficou com o olhar distante, como se estivesse revivendo aquele momento.

— Ele disse boa noite, eu estremeci. Quando olhei para aqueles olhos azuis me apaixonei, ele parecia um anjo não um homem. Seus cabelos loiros e um pouco ondulado, pereciam pedir por um toque.

— A senhora não gostaria de comer algo? Não parece, mas já passou a hora do seu almoço. – Eu disse bem descontraída, mas na verdade o meu próprio estômago reclamava por estar vazio.

— Bem... Acho que podemos parar para um lanche afinal.

— Perfeito, vou fazer um prato para senhora, e trazer aqui.

— Traga o seu também, vou continuar a contar tudo. – Fiquei assustada com o modo objetivo que ela falava — Quero morrer em paz.

— Oh dona Cristina... – Eu coloquei a mão no peito e não consegui disfarçar o meu terror em ouvir aquilo. — Por favor não diga uma coisa dessa. – Senti um arrepio horrível na espinha ao ouvir aquilo. Saí logo do quarto em busca de uma boa refeição para nós duas. Dispus a bandeja com pés para refeições na cama para ela, e me servi na mesinha que ficava próxima da janela. Comemos ali em silêncio, e depois ela pediu que eu a levasse ao banheiro para escovar os dentes.

Tive certeza que ela estava diferente, pois nunca me pediu para leva-la ao banheiro. Quando retornamos ela se acomodou na cama novamente, eu arrumei as almofadas para ela ficar mais confortável. Logo ela retomou a história.

— Bem, onde eu estava? Ah sim, lembrei, eu permaneci parada ali com o copo com limonada na mão, sem beber, fiquei encantada com o sorriso dele, tudo nele mexeu comigo. Eu usava luvas, por isso ele não viu minha aliança. Me convidou para andar no jardim, mas eu não poderia. Havia parentes do meu marido ali, e então eu tive que lhe contar a verdade. Ele não disfarçou a decepção, “perdoe-me”, foi tudo o que ele disse e se foi. Meses depois, quase um ano desse dia, desconfiei da gravidez e marquei a consulta com o único obstetra que tinha na cidade. – Ela parou e me olhou com um sorriso no rosto tão jovial que eu mesma não aguentei e comentei.

— Oh meu Deus, era ele? O homem que paquerou a senhora naquela festa?

— Exatamente, ah sim...


Continua...

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